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Toca do Coelho

Um espaço para o meu apetite omnívoro.

Toca do Coelho

Um espaço para o meu apetite omnívoro.

21.Nov.19

Muro Geracional

- Olha lá, filho? - Chamou a minha avó enquanto eu acabava de beber água para apanhar o autocarro. - Não gostas deste programa? Tu ias gostar. É de cultura geral. - Isto veio a propósito de um anúncio a Mental Samurai, que passa na TVI e eu - com a maior espontaneidade e paz interior - limito-me a dizer de minha justiça.

- Não ligo muito à SIC nem à TVI. - Foi o suficiente para levar logo com isto na fuça:

- Pois, só gostas daquele parvo, não é?

Por “aquele parvo” entenda-se “Felipe Neto”, o youtuber que mais me consome tempo televisivo. De facto, sim, é muito parvo, pois de outra maneira não teria piada. O que adoro no Felipe é que me faz rir tanto quanto me faz pensar, mas para a minha avó, tal como para outras pessoas mais velhas, a estrela do YouTube só sabe produzir conteúdo vazio e nadar em dinheiro graças a isso. Não critico a minha avó, que tem mais que fazer do que discutir com o neto o parvo que ele tanto admira, mas trago uma análise àquilo que se conhece como o “muro geracional”.

Todas as gerações apreciam diferentes tipos de parvoíce, mas, por alguma razão, a de cada geração só é visível às outras. Há uma espécie de véu que nos cai nos olhos à nascença e que transforma qualquer gosto descabido nosso num primor de entretenimento e/ou intelectualidade, numa obra-prima como nunca se viu, no fenómeno do século! O que vem de trás, segundo a maior parte da gaiatada, não presta, porque o que é para cotas é uma seca e, o que vem a seguir, é a ruína catastrófica da verdadeira qualidade de vida. “Já não se fazem desenhos animados como antes!” é apenas um exemplo do que se costuma ouvir.

Volto à barreira entre mim e a minha avó. O seu Felipe Neto é a Cristina Ferreira. Da mesma forma que, se puder, vejo os dois vídeos diários do youtuber, a Cristina ocupa a televisão dos meus avós com igual devoção. Às terças e às quintas, quando almoço mais cedo, lá está ela a debater um crime com outros comentadores ou a atribuir um prémio rechonchudo ao sortudo que ligou, no momento certo, para o número do ecrã. Mas não fica por aqui. A minha avó não brinca em serviço, não senhor! Compra-lhe as revistas, é uma seguidora ávida das suas entrevistas e sabe na ponta da língua que produtos da Cristina Ferreira estão à venda. Eu não a censuro. Só não compro artigos do Felipe Neto, porque este não os lança em Portugal, mas dá-me gozo acompanhá-lo fora do seu canal por beber as suas palavras e sentir que há sempre algo novo a aprender com ele.

Diverte-me com as suas reações aos melhores memes da internet e satisfaz-me a sedenta curiosidade com vídeos de conhecimento de tudo um pouco. Além disso, se há um traço a destacar, é a sua infinita determinação de não fazer a mesma coisa por muito tempo, oferecendo um constante estado de criação. Representa, desse modo, uma fonte de inspiração para mim. 

Acrescento que a sua incansável luta contra o machismo, a homofobia e a transfobia se mostra incontornável. Que não se deixe cair no esquecimento a incrível promoção da tolerância que concretizou ao comprar 14 mil livros com conteúdo LGBTQ+, distribuindo-os gratuitamente a quem quer que quisesse levá-los na Bienal do Livro do Rio de Janeiro. As obras tinham o seguinte rótulo: "este livro é impróprio para pessoas atrasadas, retrógradas e preconceituosas". Esta agressividade foi um contra-ataque à medida de censura do governador do Rio, que pretendia classificar como pornografia todos os livros que tivessem um resquício de homossexualidade tão simples como um beijo. Para "proteger" os menores, as obras seriam embaladas em sacos pretos com um aviso. 

À luz de tudo isto, tenho a certeza de que a minha avó sente uma ligação parecida à apresentadora da SIC. Diria até que há paralelismos entre a Cristina e o Felipe: o primeiro é o próprio modelo de trabalho. O canal do youtuber funciona como uma autêntica empresa - tem guionistas, editores, técnicos de som, etc - portanto, o único papel do proprietário nos vídeos é apresentá-los. O segundo aspeto em comum é o sentido de humor característico de tudo o que fazem ambos os entertainers, embora, claro está, sejam estilos diferentes. E por último, mas não menos importante, a inevitável tendência de gritar. Por um lado, temos (tínhamos): “esta resposta está... certa!” e, por outro, ouve-se (ainda): “é mas, não mais, diabo!”.

Comentários sobre a integridade dos tímpanos à parte, impõe-se a questão: o que é que torna tão difícil a visibilidade das parecenças e a aceitação das diferenças? E, mesmo que reconheçamos as primeiras, porque só gostamos delas no nosso molde geracional? A bem da verdade, talvez não exista uma resposta direta e unívoca. É tudo uma questão de hábitos e, posto que a humanidade tende a rejeitar o que é diferente do que costuma viver, a mesma ideia expressa de uma forma distinta sujeita-se à recusa. Aconteceu-me quando, pasmo, me deparei com a dobragem em português do Doraemon e do Cartoon Network. Só me ocorria: “o que raio fizeram à minha infância?”. É muito fácil de deduzir: mudaram-na para a ajustar às necessidades da infância de outras pessoas e, goste ou não, o mais natural é ter de me aguentar à bronca.

No fundo, creio que a rivalidade de gerações se resume à preguiça de entrar a sério no lado do outro, porque já levamos um certo tipo de formatação. No entanto, ainda bem que esta teimosia alimenta a vontade de separação, pois isso conduz a humanidade à constante reinvenção e ao aparecimento incessante de novas maneiras de conceber o mundo na semelhança e na distinção.

E vocês? Querem falar mal dos interesses de alguém para o incentivar a persistir na diferença?