Clichês
Ah, os clichês! A típica história de amor entre duas alma-gémeas inseparáveis ou a amizade de aço de dois grandes amigos. O triunfo do bem sobre o mal, a atracção dos opostos, entre outros. Mesmo que estes modelos se repitam bastante na arte de tecer histórias, nunca são dispensáveis. A histórias não são o mesmo sem, pelo menos, um deles. Clichês em demasia são enfadonhos e tornam o enredo previsível; contudo, a ausência destes retira às histórias a razão pela qual o público as consome: a identificação com elas.
Os clichês têm a capacidade de dotar as personagens de características tão humanas como as nossas, portanto, queremos estar com elas para o bem e para o mal, quase como se o filme ou o livro fosse um sonho que nós também gostávamos de viver. E, no fundo, vivemo-lo, daí não largarmos o ecrã ou não conseguirmos parar de virar as páginas.
Às vezes dou por mim tão entranhado na história, que me esqueço do mundo que me rodeia, pelo que, quando acordo, nasce em mim uma sensação mista de estranheza e de familiaridade, como algo do estilo: «eu conheço isto, mas como é que vim aqui parar novamente?».
Há imensos clichês, tão variados e com tantas funções como há géneros de histórias. Existem os amores e as amizades profundos referidos acima, os quais se relacionam com o facto de o próprio espectador ou leitor amar de paixão os que lhe são queridos, portanto, o resultado feliz de uma discussão bem feia ou, a superação de um grande obstáculo em conjunto, não revelam mais do que o reflexo das emoções e dos desejos do público.
Atrevo-me inclusive a dizer que este é o clichê mais popular, pois transcende o mundo das histórias. Vemo-lo na música, na poesia, em desenhos, etc. Para além disto, existem também várias ramificações associadas a esta bomba de comércio, como o homem que corre atrás da sua amada até ao areoporto para a convencer a desistir da viagem ou para ir com ela, pois não suporta viver sem a mulher dos seus sonhos; ou então, o encontrão que faz com que dois desconhecidos deixem cair os seus pertences e criem uma química mal troquem o primeiro olhar.
Acrescentemos também a escolha errada de um parceiro egoísta e abusivo que, no início, é um anjo, mas que depois acaba por se revelar um monstro enquanto o amor verdadeiro esteve sempre lá para o protagonista cego e equivocado... enfim, a lista nunca mais termina!
Nos enredos em que há porrada de criar bicho, há sempre o durão que dá uma valente trepa a mais de dez adversários, pondo o público ao rubro e cheio de adrenalina. Aqui nota-se o gosto talvez algo primitivo pela superioridade física e pela pancadaria. Atenção, eu não sou diferente. Desde que não seja muito explícito, gosto de assistir a um bom combate bem coreografado. Se envolver superpoderes, então, ainda melhor.
Também considero justo confessar que o estilo fanfarrão do durão, que é complementado por uma piadola ou outra em relação ao adversário, dá prazer. É engraçado percepcionar como a ficção pode alterar, diametralmente, um ponto de vista. Se fosse real, as pessoas com certeza não lhe achariam tanta piada.
O clichê cómico do: «o que pode correr mal?». Quem é que não gosta deste? O ser humano é, de facto, um bicho ruim. Quando se ouve uma personagem atirar isto, já se sabe que surpresas agradáveis não há-de ter, o que se traduz no riso que a desgraça alheia provoca. Só tem graça quando acontece aos outros, mas não acontece só aos outros, essa é que essa! Na vida real também se acha piada a isto desde que a pessoa a quem ocorre o azar não fique muito magoada, dado que, nesse caso a reacção imediata é: «uuuh! Até me doeu a mim!».
Ainda no reportório do riso, não podemos ignorar os protagonistas do humor: os palavrões e o sexo. Não compreendo, juro que não compreendo, o porquê de nós acharmos tanta piada à especialidade de Vénus. É uma coisa perfeitamente natural desde que existem seres sexuados na Terra. Rirmo-nos do sexo devia fazer tanto sentido como rirmo-nos de alguém a comer ou a respirar.
Quero dizer, até faço uma pequena ideia. A humanidade adora divertir-se com o que é proibido e, por esta razão, inclui, numa actividade cujo único propósito é entreter, elementos que «não devia» praticar nem dos quais devia retirar prazer. É tal e qual como o bicho da gula melgar uma criança para esta comer um pedacito de chocolate antes da refeição e a mesma obedecer sem hesitar. Sabe que não deve fazê-lo e, que se for apanhada, vai levar um ralhete dos pais, mas parece que o prazer do chocolate é intensificado pela noção do perigo.
Quanto ao sexo e aos palavrões é a mesma coisa com a pequena diferença de que, em relação ao primeiro, já não se leva ralhetes independentemente do que se decida experimentar. Quero dizer, ao menos em pleno século XXI já não devia ser assim, mas como o rótulo de tabu que se atribui ao sexo ainda está muito enraizado na nossa sociedade, o prazer continua a ser intensificado quando se faz humor sobre ele.
Relativamente ao segundo, não passa tudo de uma grande hipocrisia, visto que toda a gente pragueja e todos criticam quem o faz... depende do contexto, vá...
Eu adoro (mais ou menos) que nos momentos de tensão em que, por exemplo, uma bomba está prestes a explodir, o herói consiga cortar o fio certo no último segundo em quase todas as histórias. Se não me engano, creio que só vi um filme no qual o relógio parou no dois. Lamento; porém, não me lembro de qual é.
Este clichê já não me entusiasma muito, pois como é muito repetitivo já não tem o efeito desejado. O consumidor já sabe que a probabilidade de aquela personagem resolver o problema é quase certa. A sensação de alívio que o ser humano tanto preza não brota, dado que nem sequer chega a haver tensão. É bom tentar criar suspense, mas não creio que os clichês sejam as ferramentas mais adequadas.
Talvez uma boa solução fosse deixar a bomba rebentar mesmo e dar a entender a morte do herói quando, na verdade, seria um falecimento falso e o bem-feitor apareceria inesperadamente vivo. Esta ideia também não é inédita, mas ao menos não é tão comum.
As típicas histórias de superação também são, a meu ver, óptimas para viver com intensidade. O homem ou a mulher (normalmente é o homem) que quase arruína ou chega mesmo a destruir uma relação de longa data devido à sua estupidez e que, no fim, se torna num ser humano melhor.
Ou, então, o marrão que sofre abusos dos outros na escola, os quais são, regra geral, os mais populares. Na minha opinião, apesar de este último ser giro, creio que é um dos clichês mais gastos do entretenimento, sendo, por isso, um pouco cansativo de consumir quando se vê muitos filmes para adolescentes. Agarrado a este traço característico das películas juvenis, vem também o contraste entre a miúda gira popular e, o rapaz que vai à baliza a torto e a direito, por quem ela acaba por se apaixonar, porque percebe que o ex-namorado popular sempre havia sido uma besta e que tinha muito mais músculos que cérebro. Contudo, estas são as tais ramificações do clichê do romance.
Uma observação: já repararam que os populares normalmente só se encaixam em duas categorias? Os rapazes costumam ser jogadores de futebol americano e as raparigas são as clássicas líderes de claque. Por alguma razão, Hollywood mostra uma aversão a actividades fora do âmbito desportivo, visto que, quando os moços não jogam futebol americano, dedicam-se ao básquete. Não há outro tipo de populares (de ambos os sexos) também apelativos, como modelos ou músicos. É a mesma coisa que nas telenovelas portuguesas os miúdos só irem ao colégio, não há cá escolas públicas.
Aliás, quando se fala de histórias de amor, juvenis ou não, ou de telenovelas, podemos lembrar-nos de clichês como os mágicos tiram aquelas fitas enormes da camisola ou do bolso, não é? Isto deve-se ao facto de este estilo de entretenimento se basear principalmente nos tais sentimentos humanos com que todos nos identificamos, o que acaba por, na minha opinião, ser enjoativo, pois existe uma produção massiva do mesmo modelo, como se fossem produtos de fábrica.
O único clichê que quiçá não seja bem aceite por uma parte significativa das pessoas é o facto de, por norma, só se fornecer o privilégio do holofote às carinhas larocas. É sabido que a esmagadora maioria dos actores que logram aparecer na ribalta são bem-parecidos ou, se não o forem, têm algum tipo de charme inerente.
É raro encontrar actores de cinema ou de televisão que não sejam fisicamente «chamativos», digamos assim. Caso não o sejam de facto, muito provavelmente, isso deve-se aos requisitos da personagem e não à suposta escolha completamente imparcial e direccionada para o talento.
Isto funciona, claro, porque o público gosta de ver caras bonitas e está muito bem, pois é uma característica humana, mas quando se trata do ganha-pão de alguém, que, apesar da aparência, até pode encarnar a personagem de uma maneira estupenda, esta selecção parcial prejudica certamente esse alguém que também adora ser actor e que gostava de viver da representação. Apelo à consideração pelas pessoas que não nasceram com a vantagem da beleza física.
Já agora, a defesa da beleza interior em detrimento da exterior é também ela um clichê.
Em suma, eu percebo que, nalguns géneros em particular, seja difícil ser original, porque os de ficção realista, por exemplo, tal como o próprio nome indica, baseiam-se na realidade, portanto, não há muita coisa para alterar ou, pelo menos, no que diz respeito à dimensão física da história. A psicológica e a social podem ser mais bem trabalhadas com um pouco de imaginação, dado que a mesma coisa contada de uma maneira diferente, bem como criativa, tem imediatamente outro encanto e outra beleza.
Por outro lado, volto a bater na tecla da dificuldade quando se torna claro que a qualidade de uma obra é passível de ser distorcida pela quantidade das suas semelhantes. Uma telenovela, por exemplo, talvez até tenha potencial; no entanto, como já é a milionésima consecutiva, uma boa parte do público já não consegue destrinçar o que a torna um pouco diferente das outras e boa para dispensar algum tempo a vê-la. O problema não é o formato, mas sim o excesso. Seria como um amante de pudim só comer esse doce para o resto da vida. Para além de, certamente, não durar muito tempo, também iria fartar-se.
Quando era mais novo, cheguei a pensar o mesmo das séries cómicas da Disney e do Nickelodeon. Há que existir o equilíbrio entre os clichês e a originalidade, sendo também complementado com variedade. É isso que torna as histórias tão fascinantes, pois são como as pessoas: têm tanto de idêntico como de distinto.
A propósito, eis um magnífico garrafão de azeite: